Razões para Amar Lícia Manzo - Tudo Novo de Novo



Que eu sou completamente apaixonado pelo texto da Lícia Manzo, isso só é novidade pra quem nunca conversou comigo, afinal de contas eu a uso como referência pra qualquer tipo de conversa que eu tenha. Tá, ela e Martha Medeiros, que é minha outra paixão, mas acho que meu caso com Martha é algo que transcende as lógicas de vidas passadas, meu fascínio pela simplicidade textual desta deve estar mesmo associado à alguma dívida cármica minha, já com a Lícia, minha relação é mesmo de discípulo e mestre, meu interesse pelo trabalho dela é tão profundo que só quem teve a chance de assistir aos clássicos de Manoel Carlos é capaz de entender, mas vamos ao que interessa, já fazia um longo, longo tempo, que eu estava procurando os episódios do primeiro trabalho solo assinado por ela, exibido pela Rede Globo em 2009 nas noites de sexta-feira, o seriado Tudo Novo de Novo, até que finalmente o encontrei, não deu outra, fiquei das 20h00 de domingo às 08h00 da segunda-feira posterior, assistindo aos episódios, ininterruptamente, que roteiro esplendido, tão simples, tão breve, tão conciso, tão claro, tão sensível, tão Lícia Manzo.

Tal qual qualquer pessoa que acompanhou os trabalhos mais recentes da autora (meu amor por Sete Vidas não pode ser descrito nesse texto), obviamente senti uma certa disparidade, mas imagino que foi mais por questões de direção que por despreparo da roteirista, afinal de contas, direção de Jayme Monjardim e texto de Lícia Manzo já pode ser classificado como encontro de almas gêmeas, pois quando os dois se encontram somos presenteados com uma overdose de sensibilidade, aliada ao talento de um elenco bem selecionado, claro. Infelizmente Tudo Novo de Novo não teve a direção de Monjardim, não que eu esteja desmerecendo o trabalho muito bem arrematado por Denise Saraceni nele, mas é que o Jayme consegue ser um kit completo com direção, fotografia e trilha sonora irretocáveis. Outra particularidade técnica não posso deixar de mencionar, fiquei com uma pontinha de inveja de todos os autores que produziram obras desse gênero antes da explosão das redes sociais e a popularização dos smarthphones, já que nesse seriado, Lícia Manzo conseguiu trazer para a TV aberta discussões acerca de temas ainda considerados tabus para grande parte do público, e que por isso, sempre sofrem represálias de grupos conservadores, que usam a internet para promover o agitamento das massas ignorantes e pessoas abertas ao ódio gratuito e pedidos de boicote ao trabalho de profissionais comprometidos em oferecer informações acerca de determinados conflitos familiares, e mesmo com a sensibilidade única da autora, talvez, em 2016, muita gente criasse polêmica infundada acerca de determinadas abordagens expostas na série.


Tudo Novo de Novo trata das “novas” formações familiares e parentais, independente de gênero, idade ou classe social, o seriado fala do quanto as novas gerações estão mais adaptadas ao diferente e de como o novo e o velho estão sempre presente e se intercalando entre conversas, encontros e desencontros, a participação do ex-marido, ex-esposa, filho do ex-marido, enteada, atual mulher, pai-padrastro, ligações fraternais que transcendem os laços de sangue, é tudo tão simples e cotidiano que chega ser clichê, seria, não fosse o poder da autora de usar os diálogos de seus personagens para ativar o senso crítico de seus telespectadores, causando fascínio e expectativas nos discursos e fazendo de personagens insossos, grandes heróis. Acontece que Lícia Manzo tem o poder de causar empatia imediata com seus interlocutores, é como se ela estivesse na sala da nossa casa, é como se estivéssemos inseridos no contexto das personagens, é como se eles estivessem conversando conosco, os diálogos são tão atuais e precisos que eu me via a todo tempo murmurando: “Puts, né que é verdade”, “Né que é assim mesmo”, “Eita, parece eu falando”, “Meu Deus, parece que tão repetindo minhas falas”. É isso, não só nessa série, mas em todo o trabalho que traz a assinatura dessa mulher que eu tanto admiro, a essência é trazer à baila as nossa divagações e conflitos internos, só que mostrando a importância de encararmos esses desafios da maneira mais racional possível, não adianta ficarmos procurando um muro das lamentações pra chorar, os problemas não vão se resolver sozinhos, o tempo voa e não podemos estar presos à um eterno passado, precisamos viver o presente e precisamos preparar o futuro, mas sem permitir que as expectativas dele nos privem de viver nossas conquistas diárias, viver é uma batalha constante e cotidianamente estaremos entregues às eventuais surpresas, que podem ou não serem agradáveis, e no caso do seriado aqui mencionado, as interlocuções familiares são apenas pano de fundo para a explosão de dilemas pessoais dispostos entre doze breves episódios de uma série que infelizmente não foi renovada para mais temporadas.


E ainda não acabou, a série é tão bem pensada que distribui o elenco entre relevantes personagens de faixas etárias tão diversas que vão do feto à terceira idade, tudo articulado de maneira meticulosa, e todos com seu devido espaço, e muitas vezes, cruzando-se entre si e gerando um diálogo lindo entre diferentes gerações, me arrepio só de lembrar. Quanto ao elenco, eu não sabia, mas Júlia Lemmertz teve a chance de defender sua Helena de Manoel Carlos ainda aqui, antes mesmo de ser escalada para o papel principal de Em Família, sim, Clara, sua personagem em Tudo Novo de Novo foi a verdadeira Helena da atriz, uma mulher batalhadora como qualquer outra, residente na capital fluminense, que traz consigo os sonhos de qualquer ser humano romântico e sonhador, mas que entende que nem sempre é possível adquirir tudo o que se planejou pensando ser aquilo o essencial à felicidade, uma mulher comum e dona de seus próprios passos, que luta pela sobrevivência de seus relacionamentos, mas que não se permite se colocar na posição de vítima quando chega o momento de romper essas relações, e após dois casamentos mal sucedidos e o saldo de um filho para cada, ela continua se dando a chance de amar e encontrar alguém que se encaixe naquele seu modelo de vida, alguém que se encontre em sua bagunça de filha, mãe, irmã, mulher, profissional, da rua, do lar, cidadã, pessoa. Tão Helena, que tal qual as famosas heroínas de Maneco, trazia também na bagagem uma filha chata, egoísta e mimada, mas completamente dependente de seu amor e humanidade, resultado, talvez, de seu modo próprio de mãe super-protetora e devotada à felicidade dos filhos acima até da sua própria, a criatura é tipo uma mistura de Joice (História de Amor), Eduarda (Por Amor) e Camila (Laços de Família), só que em versão adolescente. Os demais, um elenco primoroso e meticulosamente comprometido, do mais jovem ao mais velho, embora a trama tenha sido protagonizada por Júlia Lemmertz e Marcos Ricca, a maior parte da turma foi composta por atores menos conhecidos, mas não menos talentosos, e entre um episódio e outro ainda tivemos a chance de rever nossa saudosa Yoná Magalhães, maravilhosa. Ah, não posso deixar de mencionar o destaque da versão mirim de Polliana Aleixo que aos 13 anos já dava um baile de atuação, dividindo o mesmo núcleo de deuses como Irene Ravache, e ainda tivemos uma versão ninfeta da nossa, até então, ainda não, professora Helena de Carrossel, resumindo um trabalho primoroso de profissionais comprometidos com um texto feito para tocar a alma daqueles que se dispusessem a entendê-lo.

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